Educação antirracista: escola, currículo e comunidade

Viviane Letícia Silva Carrijo

Antes e desde a homologação da Lei n.º 10.639/2003 no Brasil, posteriormente alterada pela Lei n.º 11.645/2008, que trata da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nos sistemas de ensino brasileiro, muitos são os estudos desenvolvidos com o objetivo de implementar essa lei no currículo escolar (CAVALLEIRO, 2001; ROMÃO, 2001; SILVA, 2001; MUNANGA, 2003; GOMES, 2010, 2013; DA SILVA, 2013 entre outros). Trata-se de uma demanda que está além da consideração do conceito de “raça” como parte apenas das ciências naturais, nas quais é usado no campo da Zoologia e da Botânica para classificação de espécies vegetais e animais. 

De acordo com Munanga (2003), na contemporaneidade, esse conceito está arraigado a práticas de poder, como categoria social de dominação e de exclusão. Em análise dessa perspectiva em relação à constituição do currículo escolar, podemos observar o desafio para ir contra essa corrente de opressão racial elucidada no apagamento dos saberes afro e indígenas na construção do conhecimento. Quando falamos de “construção”, consideramos os valores epistemes e ontológicos que constituem esse currículo. Mais do que inserir história ou de se falar sobre temáticas afros e indígenas, por exemplo, trata-se de se compreender como tais valores podem se tornar parte constitutiva da comunidade em seus modos de ser e estar no mundo. 

Por muito tempo, o currículo foi executado monoculturalmente, no caso do Brasil, sob influência da tradição europeia. Fato esse constantemente refutado por pedagogias sócio-histórico-culturais que reconhecem a constituição das pessoas por meio de diversas culturas, grupos étnico-raciais, e, por conseguinte, se apropriam de diferentes visões de mundo socialmente. Nessa perspectiva, no que tange, a uma abordagem antirracista, valorizar a diversidade da sociedade brasileira, a partir das suas raízes raciais, significa ter uma postura de compreensão do que é o mundo, o trabalho, as pessoas e como estas se relacionam a partir da compreensão das diferenças. Ao considerarmos esses fatores ontológicos e epistêmicos da diversidade social na construção do currículo, encontramos a problemática do método: como executá-la? Que instrumentos utilizar? Qual o planejamento?

Uma busca rápida no Google Acadêmico com a palavra-chave "métodos educação antirracista" mostra mais de 20 mil resultados de pesquisas com artigos, livros e capítulos sobre isso. No Catálogo de Teses da Capes, com dissertações de mestrado e teses de doutorado, a busca mostra 65 estudos. Essa breve investigação evidencia a possível existência de várias possibilidades de métodos antirracistas desde desenvolvimento de temáticas a pedagogias criadas para sala de aula nos diferentes componentes de ensino. Fica a reflexão: como questões antirracistas foram apagadas da nossa formação escolar, o ensejo de inserção dessa atitude no currículo requer criações inéditas de um método antirracista. Como uma das muitas possibilidades, podemos mencionar o "brincar" como ferramenta intercultural para fomento do diálogo entre os diferentes saberes étnico-raciais na sociedade. Logo, o brincar como um caminho possível para ação de mudança, de criação do novo no processo do viver. 

Ao cunhar o termo “brincar”, Vygotsky (1933) apresenta como exemplos situações da infância e tem como objeto de análise a criança. Contudo, consideramos os estudos de Vygotsky de compreensão do ser humano, isto é, da sociedade, da constituição das pessoas de todas as idades. Portanto, o brincar é entendido como motor de desenvolvimento de todos, uma vez que instaura espaço de relações interpessoais, no qual as pessoas podem vivenciar, em contexto lúdico e de performance, a materialização de comportamentos e atitudes para os quais ainda não têm soluções para lidar na vida real, mas podem imaginar situações futuras onde consigam lidar. Compreende-se o brincar com uma ação transcendente dos limites dos repertórios e da realidade circundante e imediata de cada envolvido. As pessoas, então, expandem seus próprios limites e possibilidades, instaurando um processo capaz de prepará-la para as ações dentro de um contexto real de vivências. 

A partir dessa perspectiva do brincar, é que pensamos uma educação antirracista, pautado também na necessidade de um currículo decolonial e intercultural. Esse tipo de currículo pressupõe propostas constituídas no “estar com as pessoas”, no produzir sentido colaborativamente, por meio de diálogo do conhecimento sobre a cultura, história, língua e identidade dos envolvidos. Nessa linha, Candau (2013) defende que a interculturalidade pode promover na educação reconhecimento da possibilidade do diálogo entre os diferentes grupos socioculturais. Em consonância com essa visão, Torres Santomé (2013) propõe a construção do currículo como enfrentamento de desigualdades sociais, com conteúdos transciplinares e temática antirracista, antissexista, ecológica. educacionais. Essa interculturalidade abre espaço para um currículo decolonial que fomente a libertação das pessoas do pensamento colonial para um crítico que “problematiza e resiste às práticas monoculturais, presentes historicamente no contexto educacional, assim como resgata e desoculta os saberes das culturas negadas” (UCHÔA; CHAVES; PEREIRA, 2021, p. 63). 

O currículo decolonial pode favorecer a construção de uma educação antirracista, porque culmina em um diálogo de saberes sem uma subordinação cultural, pois visa valorizar e trazer para o meio educacional modos de ser e estar no mundo que, por tanto tempo, foram negados e ocultados do currículo, a saber, principalmente, da cultura afro e indígena. O caminho para uma educação antirracista se apresenta com muitos desafios. Entretanto, pelo brincar, pode-se constituir vivências para as pessoas lidarem com, por exemplo, os conflitos decorrentes do convívio com a pluralidade. Ao se viver a contradição de se distanciar do colonialismo, mentalidade conhecida e dominante na sociedade, o desconforto poderá surgir e ser problematizado para, assim, propiciar novos repertórios para promoção da libertação de opressores e oprimidos. 

Relatos brincantes de práticas antirracistas 

Na formação de formadores, há o "Brincadas", um projeto de pesquisa e extensão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenado pela professora Fernanda Liberali, que reúne escolas da rede municipal e estadual  de São Paulo, inclusive, uma comunidade quilombola e uma indígena. É um projeto no qual professores, alunos, gestores, pais, pesquisadores de mestrado e doutorado colaboram no desenvolvimento de propostas curriculares por meio do brincar. O projeto é celeiro de discussão e de vivências de intervenção no contexto social nos mais diversos temas, um deles: racismo. 

Em 2021, criamos nas Brincadas espaço para as pessoas se indignarem e desenvolverem o desejo de transformação social a partir e no coletivo. Para isso, utilizamos diversos recursos em nossas oficinas. Por exemplo, foi com a música de Dona Ivone Lara que abrimos nossa primeira oficina sobre antirracismo. Chamamos isso de Brincada Antirracista! 

Neste workshop via Zoom, começamos com uma dança da Tanzânia. Depois, iniciamos um teatro dos oprimidos com situações de racismo. Também ouvimos de uma mestre griô histórias sobre a Boneca Calunga da África. Em salas simultâneas brincamos com matemática, história, biologia e literatura brasileira na perspectiva antirracista. A narrativa desse encontro está em uma live no canal de Youtube do Projeto Brincadas em: https://youtu.be/WniphMafOP4?si=VpFrWcamZPszjPar

Em 2023, também no Brincadas, usamos o Teatro Notícia para discutir questões antirracistas em nossos encontros presenciais. Dividimos os participantes em pequenos grupos, para os quais distribuímos notícias com situações vividas por pessoas negras. Por exemplo, a notícia da primeira ministra negra do STF e o caso do entregador negro atacado pela mulher branca estavam nessa distribuição. A atividade consistia na leitura e discussão das notícias para, em seguida, criarem um Instagram Reels, um vídeo curto com mensagens de enfrentamento do racismo. 

Para além do Brincadas, há também relatos de escolas que desenvolvem projetos antirracistas por meio de seus estudantes. Um exemplo é o Colégio Rio Branco que, neste mês de novembro, criou espaço para adolescentes do Ensino Fundamental II e Ensino Médio desenvolverem projetos interdisciplinares em pequenos grupos. Orientados pelos professores, os jovens trilham o caminho da pesquisa na escolha do problema, procedimentos metodológicos e propostas de intervenção. Um grupo do 8° ano decidiu pela problemática: "Racismo e a sua relação com a segregação socioespacial na cidade de São Paulo". O intuito dessa equipe é estudar o racismo na cidade de São Paulo a partir da análise sobre como esse fenômeno influencia na ocupação de espaços, como está relacionado com a formação das favelas. Além disso, o grupo almeja propor políticas públicas que promovam projetos de equidade racial e melhores oportunidades de qualidade de vida para a população negra. 

Comunidade para uma educação antirracista

A escola como comunidade que envolve pais, estudantes, professores e gestores em um trabalho colaborativo pode ser um dos caminhos para alcance de uma educação antirracista. Joyce Suellen Lopes Dias, mulher preta, diretora de uma escola municipal na cidade de São Paulo, sobre isso cita hooks e pontua: 

(...) hooks (2020) nos convida a pensar a Pedagogia Engajada, a qual vê a escola/sala de aula/gestão como um espaço de interação, em que todos são convidados a ser agentes dos processos de ensino-aprendizagem. É preciso pensar como comunidade e buscarmos nos ouvir nesse processo. A escola, nessa perspectiva, se torna o espaço onde todas e todos podem compartilhar suas experiências do que é ser e estar neste mundo, abrindo, assim, possibilidades para que os diferentes se enxerguem dentro das suas diferenças e no que os une. (...) A educação precisa ser pensada para o bem comum e a justiça social, pois se assim não for, estaremos fadados a repetir erros do passado e negligenciarmos nosso papel na constituição de uma sociedade mais justa (DIAS, no prelo).

Somado a esta reflexão, terminamos com um trecho do poema de Luana Bayô, mulher preta, cantora, educadora e compositora paulistana de Campo Limpo, São Paulo. Para uma educação antirracista, precismo nos aquilombar!

Aquilombe-se
Junte-se aos seus
Volte um passo atrás
Ouça os seus ancestrais.
Vai la no útero de mãe
Receba um abraço de uma irma
Deita no colo do teu mais velho
Brinque com o futuro pra esperançar
Relembre do porquê começou a lutar.
Se volte pra dentro de você
Se una pra não retroceder
Se organize para não se acabar
Junte a tribo e tente rever
O que te faz aqui estar?
Una forças, mãos, sorrisos,  choros, pernas …
E vamos juntos …se aquilombar.

Referências

BRASIL. Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 14 jul. 2023. 

BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm Acesso em: 14 jul. 2023. 

CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: CAVALLEIRO, E. (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. p. 161-178. 

DIAS, J. S. Pedagogia Engajada para racializar a educação e remanescer à necroeducação. (no prelo).

GOMES, N. L. Diversidade étnico-racial e Educação no contexto brasileiro: algumas reflexões. In: GOMES, N. L. (org.). Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 97-109. 

GOMES, N. L. A questão racial na escola: desafios colocados pela implementação da Lei 10.639/03. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (Orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes. 2013. p. 67-89. 

MUNANGA, K. Uma abordagem das noções de raça, racismo e etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB-RJ, 05/11/03. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf. Acesso em: 14 jul. 2023. 

ROMÃO, J. O educador, a educação e a construção de uma auto-estima positiva no educando negro. In: CAVALLEIRO, E. (org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. p. 161-178. 

SILVA, M. A. Formação de educadores/as para o combate ao racismo: mais uma tarefa essencial. In: CAVALLEIRO, E. (org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. 

TORRES SANTOMÉ, J. Currículo Escolar e Justiça Social: o cavalo de Troia da educação. Porto Alegre: Penso, 2013. 

UCHOA, M. M. R.; CHAVES, C. A. P.; PEREIRA, C. E. Currículo e culturas: a Educação Antirracista como direito humano. Revista Teias, Rio de Janeiro , v. 22, n. especial, p. 61-72, 2021. Disponível em <http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-03052021000500061&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 19 jul. 2023. Epub 18-Fev-2023. https://doi.org/10.12957/teias.2021.61610. 

VYGOTSKY, L. S. [1934] Pensamento e Linguagem. Martins Fontes, 2007. 

VYGOTSKY, L. S. (1933). O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, p.105-118, [1933], 1991.

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