Alfabetização e letramento: os novos tempos e suas exigências

Por Sueli Marciale

Um dos objetivos essenciais do educador, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, tem sido a busca de novos caminhos e metodologias de trabalho para a alfabetização. Essa busca deve-se à meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014, que traz a necessidade de alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o fim do 3° ano do Ensino Fundamental. Apesar do prazo estendido, essa meta acaba gerando polêmicas entre os professores, pelos possíveis métodos utilizados nas práticas de alfabetização, e expectativas nas famílias, pois têm a impressão de que o avanço das crianças no domínio do código é nulo ou muito lento.

As situações citadas advêm de ideias diferentes a respeito de algumas questões, entre elas: o que é alfabetização? Como se aprende a ler e a escrever? O que é a escrita? Essas dúvidas têm sido menos frequentes nos grupos de formação de professores, pois nossos estudos partem do pressuposto de que os novos tempos e suas exigências demandam uma visão ampla da alfabetização. Para compreender a complexidade do ato de ler o mundo, é preciso ir além do domínio de sons e da escrita de palavras.

Ler o mundo: muito além das palavras

Entendemos que ler o mundo significa ler as coisas, os objetos, os sinais. Se uma criança que não sabe ler vê o símbolo do colégio, por exemplo, mesmo não tendo o domínio do código, entende que aquilo pode querer dizer, entre outras coisas, escola. Posteriormente, quando ela aprender a ler e a escrever, ligará a imagem à palavra, fazendo uma leitura completa e não apenas uma decodificação.

A criança “alfabetiza-se”, portanto, quando descobre que o mundo é feito de significados, e compreende como funciona a estrutura da língua e a forma como é utilizada em situações comunicativas reais. “Alfabetiza-se” quando cresce em um ambiente com adultos que leem, recebem cartas, e-mails etc. e tem, assim, acesso à função social da escrita.

No início da vida escolar, para que aprenda a ler e a escrever com melhor qualidade, é preciso que ela tenha acesso a diversificados e bons modelos de leitura para observar e utilizar a escrita em diferentes contextos. Além disso, devem ser oferecidas oportunidades para que se sinta motivada por meio da leitura. Dessa maneira, as diferentes formas de escrita acontecem com mais autonomia, desde os primeiros registros alfabéticos até a produção própria de textos.

Respeito ao ritmo de cada um

Cabe lembrar que não se trata de acelerar o processo do ensino da leitura e da escrita sem respeitar os ritmos individuais e as características de cada faixa etária, mas de desafiar a criança a aprender a falar, a escutar, a escrever, a ler e permitir o erro, refletindo sobre ele e corrigindo-o.

Entender como cada faixa etária desenvolve a leitura de mundo e a escrita é uma das primeiras observações realizadas por nossos educadores. A criança inicia a “escrita” registrando garatujas, desenhos sem figuração, e, mais tarde, desenhos com figuração. Normalmente, a criança que vive em um ambiente urbano, com estimulação linguística e disponibilidade de papel e lápis, começa a rabiscar e a experimentar símbolos mais cedo, por volta dos dois anos. Muitas vezes, ela apresenta uma consciência sobre as características da escrita.

Posteriormente, registra símbolos e pseudoletras misturadas com letras e números, já demonstrando linearidade e utilizando o que conhece do meio ambiente para escrever (bolinhas, riscos, pedaços de letras). Nesse momento, há um questionamento sobre os sinais escritos. Ela pergunta muito ao adulto sobre a representação que vê em seu entorno. Nessa fase, a criança começa a distinguir letras de números, desenhos ou símbolos e reconhece o papel das letras na escrita. Percebe que as letras servem para escrever, mas não sabe como isso ocorre.

Em outra fase, sente-se confiante porque descobre que pode escrever com sentido. Ela conta as partes sonoras, isto é, as sílabas, e coloca um símbolo (letras) para cada parte (sílaba). Essa noção de que cada sílaba corresponde a uma letra pode acontecer com ou sem valor sonoro convencional.

Numa próxima etapa, a criança começa a acrescentar letras, principalmente na primeira sílaba (o valor sonoro é extremamente importante para ela). Ao professor cabe o trabalho de refletir com ela sobre a escrita a partir da observação da escrita alfabética e da reconstrução do código. Nesse momento, ela compreende que escrita e desenho são sistemas distintos de representação. Vai aprendendo que a escrita serve para funções muito diferentes e que distintos tipos de texto são usados em diversas situações comunicativas.

Como a capacidade de compreensão não acontece automaticamente, nem está plenamente desenvolvida, ela precisa ser exercitada e ampliada em diversas atividades, que podem ser realizadas antes que a criança tenha aprendido a decodificar o sistema de escrita.

A partir do 3° ano, haverá o momento no qual as regras virão à tona. Conforme as crianças crescem e desenvolvem-se em seus percursos de aprendizagem, a noção das regras ortográficas e a ampliação de seu universo linguístico virão a seu tempo com o auxílio do professor, que tem papel fundamental nesse processo.

O erro como parte da aprendizagem

Na construção da aprendizagem da leitura e da escrita, as crianças cometem “erros” esperados. Eles têm um importante papel no processo de ensino porque informam o adulto sobre o modo próprio de pensar das crianças. Escrever, mesmo com “erros”, permite às crianças avançar, uma vez que só escrevendo é possível enfrentar certas contradições e, com as intervenções do professor, superá-las. A melhor alternativa, seja qual for a etapa em que a criança se encontrar, é instigá-la a elaborar novas hipóteses para a escrita da mesma palavra.

Para chegar a ler e a escrever convencionalmente, portanto, a criança percorre um longo caminho, enfrentando toda sorte de desafios, elaborando e reelaborando hipóteses, em um processo constante de equilíbrios e desequilíbrios cognitivos que permitem sempre um estágio de leitura e escrita mais avançado que o anterior.

 


Sueli Marciale
Diretora assistente do Colégio Rio Branco, Unidade Granja Vianna.
Educadora com larga experiência e conhecimentos em Gestão Pedagógica e Formação Docente, desenvolvidos em instituição de grande porte, tanto em Educação Básica, quanto em Ensino Superior (PUC-SP). A formação em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, em Relações Interpessoais na escola e a construção da autonomia moral, entre outras, possibilitou-lhe um percurso diversificado: como professora de Educação Básica e Ensino Superior, coordenadora de Língua Portuguesa, coordenação pedagógica e assessora voltada para a formação docente. Nos últimos anos, tem exercido a função de diretora em instituições de ensino (Educação Básica), tendo como atribuições centrais formar e alinhar práticas de professores, coordenadores e orientadores educacionais, além das administrativas.

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